domingo, 24 de dezembro de 2023

Seremos cúmplices, se assim quiser.

 


 Os conceitos de Natal e Páscoa representam o início e o fim de uma jornada.

O nascimento e o renascimento de um ser que, por propósito, se fez homem e mostrou à humanidade um caminho possível.

Seja a história como for e seja o propósito qual for, ela serve a cada um de nós.

Como todos nós, aqui ele travou conflitos internos e externos. A diferença, nessa história de vida, é que ele soube amar, soube compreender e perdoar, soube sustentar a sua verdade e os seus valores (mesmo sendo incompreendido), soube discernir os limites que deveria respeitar e os que poderia elastecer, soube a quem acolher e a quem desenvolver: quem assim desejava.

Eu sou essa pessoa que deseja.

Milênios se passaram, mas os seus olhos sorridentes aqui ficaram e, ainda hoje, assentem com os desejos sinceros verbalizados no íntimo dos nossos corações. É quase como se dissesse: seremos cúmplices.

Nós mesmos nos elegemos. Somos quem deve escolher, trabalhar, observar, selecionar e, assim, passar a habitar as frequências que estão disponíveis a todos nós.

Tudo nos é possível, mas quase nada está ao alcance das mãos. Essa é a nossa jornada.

O caminho de cada um de nós inspira os passos de toda a humanidade.

 

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

A arruda e o tamanho do nosso mundo

 


 O nosso mundo se limita à nossa capacidade de compreensão.

A arruda me lembrou disso. A cheirosa amarelou. Os ramos rareavam enquanto os entrenós se afastavam e as extremidades se enfeitavam de flores.

Por já ter dedicado muito tempo a observá-la (e fotografá-la: fica linda após uma garoa), eu sabia o que os seus galhos alongados pediam: uma boa poda.

A arruda, quando floresce, entra em ciclo de perecimento. É preciso libertá-la das flores (e privarmo-nos do perfume), para que ela ganhe o direito de experienciar uma nova primavera. Mas, naquele momento, eu me sentia incapaz de fazê-lo. Era preciso esperar que as flores deixassem de ser visitadas pelas abelhas.

Poda feita, em poucos dias o amarelado se foi e pequenos brotos começaram a surgir.

Eu poderia ter simplesmente assumido que a arruda havia sido acometida por um “seca-arruda”. Mas, se eu assumisse que alguém a havia secado, não teria encontrado uma solução para a sua enfermidade.

Entretanto, eu conhecia o seu ritmo, os seus ciclos e fui capaz de identificar as suas necessidades.

Nem sempre – ou quase nunca – a solução de um problema pode ser encontrada buscando um culpado (o que serve, apenas, para afastar de nós a responsabilidade pela nutrição das relações). Clara demonstração de inabilidade.

A maior parte de nós atravessa a vida incapaz de perceber e compreender o seu entorno. Perdemos a curiosidade. Contentamo-nos em conviver com a superficialidade, quando poderíamos entrelaçar firmemente os dedos (uns com os outros) e, com os olhos e lábios da alma, clamar: mostre-me você.

Centrados em nossos dramas - personagens principais de nossa história -, não reconhecemos e não respeitamos o ritmo, os ciclos e as necessidades dos nossos companheiros de jornada.

Quanto a mim, coleciono esses momentos (fotografia autoral).

 

Sobre as formigas

 


Certa vez, sentei-me em frente a um terapeuta e ele começou a sessão dizendo: vou desenhar você. Acho importante dizer que foi a minha primeira vez em um terapeuta.

Desenhou um baita rabisco.

Disse: “Nada se perde no universo, o que você não usa, por algo ou alguém é utilizado. Você é um emaranhado de energia não canalizada. Emana saborosa energia que não está sendo desperdiçada.”

Demorei para entender. Afinal, onde estão os mentores, os anjos, os protetores, enquanto a minha força de vida é tomada por sabe lá o que?

Ninguém espanta formigas pedindo que elas saiam. Espantamos formigas tornando inviável a sua permanência.

Onde não houver alimento disponível, não haverá formigas – por isso, as formigas me lembram de me apropriar do meu espaço pessoal e mantê-lo asseado.

Isso funciona com quase tudo.

Ação. Direcionamento consciente da própria energia. Seleção. Delimitação de espaço. Imposição de respeito. Consistência.

 

Assim ela me ensinou.

 

 


Há alguns dias eu tive um sonho.

A história era representada por uma pessoa que simboliza, para mim, limitação de autonomia em termos de gestão de vida, de capacidade de nutrir relações, de lidar com conflitos.

No sonho, essa pessoa se oferece para me levar até algum lugar e eu me espanto, porque ela sequer dirige.

Ela se sentou ao volante e a minha primeira percepção foi: não é que ela dirige bem?

Mas ela seguiu dirigindo para o lado oposto ao que deveria ter seguido. Ela percebeu a minha contrariedade e apenas sinalizou que eu observasse e aguardasse.

Em dado momento, o caminho que eu teria escolhido e o caminho que ela escolheu se uniram. Apenas contornavam, por lados opostos (quase espelhados), o mesmo obstáculo. Então, à frente, havia um único caminho.

Eu entendi.

Cada pessoa, por mais limitada que nos pareça, deve ter a oportunidade de fazer as próprias escolhas, afinal, todos os caminhos levam a um fluxo único – da constante evolução. Quem sou eu para escolher, pelo outro, o caminho mais adequado? Quem sou eu para afirmar que uma estrada oferecerá melhores aprendizados (ou maior velocidade) que outra? Quem sou eu para afirmar que a paisagem pela qual eu escolhi transitar é a mais bonita?

Assim me ensinou essa pessoa: apenas sou totalmente responsável pelas minhas próprias escolhas, pelo meu plantio, pelos valores que cultivo. 

Eu sou o meu próprio compromisso.

 

domingo, 8 de outubro de 2023

Life is an emmergency

 


 Life is an emmergency.

Tenho ouvido isso recorrentemente.

É como se dissesse: há muito mais à espera de um ser humano (bênçãos e tarefas).

Faz-me sentir que a nossa concepção sobre a vida está completamente equivocada.

Faz-me sentir que estamos estagnados e que o precioso tempo que temos vem sendo desperdiçado em cirandas emocionais que não conseguimos perceber, quiçá assimilar.

Faz-me sentir que existe um universo de possibilidades aguardando (em um estado de quase-ebulição) pelo comando de cada ser humano encarnado e, infelizmente, adormecido.

Estamos derrapando, em reprise, vivendo as mesmas histórias e os mesmos dramas, apenas em diferentes enredos. Alternamos os personagens, mas algo em nós parece não entender que certas histórias precisam, apenas, ter um final – devem dissolver-se no tempo.

Enquanto seres que nascem e renascem inconscientes, não temos clareza para reconhecer se as nossas dores constituem causa ou consequência, ação ou reação. Isso significa que a nossa revolta e a nossa indignação podem estar sendo direcionadas a nós mesmos (às nossas escolhas passadas). Em meio a tudo o que não sabemos, cabe-nos, apenas, saber selecionar as sementes que serão plantadas no hoje.

A densidade (emocional) do planeta chegou ao extremo e, pessoalmente, acredito que o nosso suposto livre arbítrio não mais nos autoriza a passar ao largo do autoconhecimento, do perdão e da compaixão.

A cada dia mais conectados – e totalmente desconectados.

A cada dia com mais acesso ao conhecimento – e incapazes de dedicar tempo à sua busca (quanto mais de incorporá-lo à vida, de exercitá-lo).

A cada dia hasteando mais alto a bandeira da liberdade - e escravos da validação alheia.

É difícil sim, muito difícil. Vivemos rotinas exaustivas e com propósitos efêmeros. Os nossos reais valores escorrem entre os dedos da nossa hipocrisia.

Vejo a frase inicial como “a fotografia que eu não tirei”: há momentos, há coisas e há pessoas que não estarão à nossa disposição amanhã. Amanhã a luz não será mais a mesma, nem o ângulo. Amanhã as cores serão diferentes e aquele contraste que tornava a cena especial terá desaparecido. Quando menos esperamos (ou sem nos esperar), a flor se abriu por completo e a sacralidade que havia no interior do botão esvaneceu.

Afinal, o que pode e o que não pode ser deixado para depois?

O que está à espera de ser percebido por um ser humano?

O sagrado e o profano coexistem.

O condicionamento do olhar, o ajuste de frequência, cabe a cada um de nós.

 

domingo, 20 de agosto de 2023

Just a broken Hallelujah

 


Com bastante frequência eu tenho a impressão de ter vivido diversas vidas em uma única.

O passado, como uma estrada que (a cada segundo) fica para trás, quase não me é mais familiar. Alguns momentos, entretanto, representam uma memória tão viva que, acredito, sejam parte indissociável do que eu me tornei.

Essa foto representa um desses momentos. Eu e três grandes amores da minha vida em frente à nossa primeira plateia.

Apenas a nossa bailarina voltou a se apresentar. Morou em outros países, conheceu diversas pessoas, aprendeu outras línguas. Encantou-se com a África e o seu povo.

Suas histórias abriam os meus horizontes e estimulavam o que havia de melhor em mim. “Quantas vidas ela já viveu?” – eu me pergunto.

Sejam elas quantas forem, houve algo que a representou em todas: a postura.

Sempre firme, disciplinada, determinada e corajosa. Características que nunca foram tão necessárias como agora.

Alguns se deixam levar pela doçura do seu rosto, outros conhecem os calos deixados pelas sapatilhas de ponta. Eu conheço os calos e sei do que ela é capaz.

Sei que há dores insuperáveis e que penetram a nossa vida trazendo consigo perguntas que jamais terão respostas.

Não ouso, sequer, pensar em consolá-la – sou incapaz de dimensionar a sua dor. Silenciar parece ser o mais digno a se fazer.

Coloco-me a serviço e imploro por iluminação: que eu seja a presença mais divina que estiver ao meu alcance, que eu seja o melhor ser humano que eu puder ser, que, apesar de todas as dúvidas que trago em meu peito, o meu amor seja capaz de nutri-la e sustentá-la (por um segundo que seja).

It’s a cold and it’s a broken Hallelujah.

 

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Bay, um verbo.

 

 

Quem convive comigo sabe que eu pouco vejo algumas coisas. Também não tenho apego a datas e não me obrigo a celebrar ou a chorar ocasiões especiais. Grande parte do que é considerado socialmente importante, pode ser chocantemente desimportante para mim. 

Um acontecimento significativo, entretanto (e rapidamente), transformou-se em ponto de referência absoluto – como se fosse o único parâmetro temporal que, hoje, meu cérebro compreende. 

Foi quase um mês após o falecimento dela que eu senti o primeiro ar gelado do ano inundar os meus pulmões. 

Ela ainda estava viva quando as flores da babosa despontaram, mas foi poucos dias após a sua passagem que os botões se vestiram de laranja e passaram a ser visitados por vespas. Inclusive a babosa que ela havia podado e estava sendo honrosa e silenciosamente mantida no mesmo lugar (como um santuário) floriu.  

As folhas da cerejeira começaram a morrer junto com ela e algumas, ainda, resistem. 

A mirra estaria florida agora, não tivesse sido ceifada. Mas, assim como guardo o perfume da mirra em flor nos meus sentidos, assim também o seu permeia a minha vida.

O sol deixou de tocar o chão da horta. Isso aconteceu duas semanas depois que ela se foi. Assim como as plantas mais baixas, eu também perdi contato com o calor que sempre reputei indispensável. 

Para mim o inverno chegou mais cedo e, assim como as plantas, preciso encontrar dentro de mim as reservas de vida que me sustentarão até a primavera, quando espero, também, poder vicejar. 

Ainda ouço a sua voz e sinto as suas mãos nos meus cabelos. Kanarô, dizem os índios: eu sinto a sua presença (e não a sua falta). 

Caminho devagar, nutrindo-me de grandes amores e longos abraços. Ainda mais que antes, sei que cada minuto de conexão é santificado e revestido de preciosidade. 

Escrevo, não por dor. Mas para que, de onde estiver, ela compreenda e sinta e absorva o grande significado da sua existência: uma verdadeira referência. 

Bay, um verbo.

 

domingo, 30 de abril de 2023

Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar!

 

 


Quando abril começou, eu jamais imaginei que terminaria assim. 

O fechamento de um ciclo de aprendizados que, acredito, levará meses para ser assimilado. 

Assisti o meu maior medo tomar forma diante dos meus olhos. 

Eu a vi definir o que haveria de ser feito com o seu corpo e com as suas cinzas. Como o seu falecimento deveria ser representado no jazigo da família. O destino de suas roupas. Organizou papeis. Limpou gavetas. Deu conselhos. Solicitou visitas. 

Ela olhava nos meus olhos enquanto o médico sinalizava que o corpo dela não estava mais respondendo a nenhum tratamento e que o plano, dali em diante, seria mantê-la confortável. Estou certa de que ela compreendeu mais o meu olhar, que as palavras do médico. 

“Eu ainda tinha tantos planos” - disse ela com a voz trêmula. Eu também - desejei dizer, mas sem conseguir emitir nenhum som. 

Ela se permitiu desabar. Eu a abracei enquanto chorava, assim como, tantas e tantas vezes, ela me abraçou. 

Ela se permitiu silenciar. Ela se permitiu tocar. Ela se permitiu sentir. Ela se permitiu receber. 

Estive lá todos os dias (falo dos últimos 42 anos e não dos últimos 42 dias). Respiramos o mesmo ar nos dias bons e nos dias ruins. Dividimos os nossos pratos prediletos, assim como dividimos a comida do hospital.  

Eu sorvi essa experiência até o ponto de reconhecer a sua alma: uma grande e antiga alma amiga. Fui capaz de obedecer a (quase) todos os seus pedidos. 

Fiz o meu melhor para dignificar os seus últimos dias e para ajudá-la a ressignificar as dores da sua existência - que eram muitas. 

A sua inteligência natural foi se aprimorando e ela foi capaz de construir os seus últimos capítulos conforme o desejo do seu ser maior. 

Eu assisti tudo, absolutamente tudo, acontecer de forma perfeitamente encadeada, ordenada. Eu era capaz de sentir a força que operava o encerramento daquela experiência. 

Certo dia, ouvi: “o que você gostaria que fosse a última coisa que ela veria em vida?”. Sem precisar pensar, respondi: o meu olhar. Eu e ela sabemos que assim foi. 

Uma alma grandiosa que fechou uma existência. Não deixou reticências. 

Eu chorei com o seu sofrimento, mas não derramei uma lágrima de dor com o seu desligamento. Alegrei-me (eu sei, também estranhei) com a libertação da sua alma, que não podia mais fazer daquele corpo um lar. 

Algo de mim atravessou dimensões junto com ela e pode atestar: o verdadeiro amor não conhece o tempo, nem o espaço, nem a forma. 

Eu a sei viva. 

Eu a sei plena. 

Eu a sei família. 

Eu a sei existindo como sempre existiu. 

Fecho o mês de abril com um desejo que já sei realizado: que os nossos planos, de alguma forma e em algum momento, coincidam. 

Eu a reconhecerei.

"... Pois seja o que vier (seja o que vier)
Venha o que vier (venha o que vier)
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar..."