- Era uma vez, a Ana Mais ou Menos. Morava com seus pais e seu irmão. - disse a Vovó, quando iniciou a saga das histórias na hora de dormir.
- E ela tinha uma Bay? - retrucou a Maria Júlia, que no auge dos seus quatro anos não conseguia imaginar a vida de uma criança sem uma Bay para chamar de sua.
Temos poucas fotos dela, que sempre exigiu não ser registrada, com a falsa expectativa de não ser lembrada. Entretanto, as suas mãos aparecem nas nossas fotos mais importantes. Segurando-me no colo no dia do meu batismo. Oferecendo a primeira papinha à Maria Júlia e a primeira mamadeira ao Felipe - construindo a independência necessária para que pudessem passar mais tempo com ela.
Vivemos tudo juntas. Posso dizer que ela me apresentou a vida.
Ao me ensinar a cavalgar, ensinou-me a amar os cavalos, a observá-los e a compreender o seu instinto: "Quando um cavalo se recusar a seguir em frente, simplesmente retorne ou contorne, certamente há um perigo". Ela falava sobre urutus e cascavéis, mas, na minha cabeça, ela estava falando do famoso corpo-seco. Esse dia chegou e eu retornei (assustada). Ventania era o nome do cavalo que ela me deu de presente.
Ao me ensinar a dirigir, ensinou-me a importância de ser independente, mas, também, de estar disponível (poder partir ao resgate de qualquer um, a qualquer hora). A primeira vez foi em um fusca azul (eu tinha 13 anos). Lembro-me do sentimento incrível de poder me autodeterminar. Algumas vezes, em meio à tarde, eu decidia andar a cavalo ou comer canjica quente no Purunã - eu me sentia uma pequena Bay nesses momentos. Meu primeiro carro foi compartilhado com ela. E o segundo e o terceiro.
Ao me ensinar a falar a verdade, ensinou-me sobre confiança. Falar a verdade, ainda que fosse uma bem feia, era um ato digno de prêmio: "Sabendo a verdade, podemos descobrir como resolver o problema. O que vamos fazer com isso?". Jamais fui punida por falar a verdade e essa foi a base da mais linda construção que fizemos juntas: reciprocidade e cumplicidade. Entre nós jamais houve segundas intenções, comunicados indiretos ou meias palavras.
Aprendi bem cedo que poderia confiar nela (e desejei ser, sempre, uma pessoa confiável). Minha irmã estava aprendendo a andar. Uma polaquinha de cabelos finos, quase brancos. Meu pai, ao descer uma rampa em marcha ré, não enxergou a Tamara. Ele sentiu o impacto e conseguiu parar o carro com o pneu traseiro a poucos centímetros de sua cabeça, a ponto de o seu cabelo curto ficar preso entre o piso e a borracha. Enquanto todos corriam e se desesperavam, ela simplesmente estendeu as pernas atrás do pneu e disse: passe por cima bem devagar, vou soltar o cabelo dela.
Quando perguntavam a ela o motivo de não ter casado (apesar de ter sido noiva por duas vezes), ela respondia que jamais seria capaz de se submeter a alguém. Repudiava comportamentos permissivos. Essa foi a lição que eu demorei mais para aprender: posicionamento firme e amoroso (inclusive frente a ela). Apenas então eu conquistei o respeito dela, apenas então ela aprendeu a respeitar as minhas decisões (ainda que discordasse).
Lembro-me muito pequena, chorando o medo de, um dia, perdê-la. Sua morte sempre foi meu pior pesadelo.
Eu estava parada na porta da cozinha e ela vinha em minha direção. Percebi algo do lado direito do seu pescoço que me causou arrepios - sequer tive coragem de alertá-la. Seu primeiro diagnóstico fui eu quem abriu. Lembro que a dificuldade de olhar nos seus olhos durou dias. Nada, nunca mais, foi igual. Esforcei-me para lembrar de como era a vida enquanto eu ainda podia pensá-la eterna. Todos os dias que se seguiram escondiam um sinal de alerta. Era quase como se tivéssemos perdido o direito ao futuro, como se não pudéssemos fazer planos.
Eu recebi absolutamente tudo que ela me ofereceu. Eu aprendi tudo que ela me ensinou. Aprendi a ter valores firmes, a ser confiável, a ser independente, a ser comprometida, a ter palavra. Aprendi sobre a importância de servir. Aprendi sobre ser a minha própria régua e a não tomar decisões para agradar outras pessoas.
Por outro lado, também aprendi que servir demais ou ser rebelde demais tem seu preço. Que nenhum ser humano é realmente independente como pensa ser. Que a autonomia pode ser apenas uma proteção. Que temos que arcar com as consequências das nossas escolhas.
A percepção sobre a fragilidade e a efemeridade da vida trouxe consigo a necessidade de expressão. Havia mais a ser dito. Havia uma história a ser contada.
Ela começou descrevendo um Natal. Apesar da abundância de alimentos, ela e seus onze irmãos raramente ganhavam presentes. Esse Natal seria diferente, pois um saco cheio de presentes repousou sobre o chão da sala. Ela descreveu a cena por completo (inclusive o entorno da casa da fazenda). Suas irmãs mais novas ganharam bonecas e ela ansiava por segurar a sua nos braços. Entretanto, o seu presente foi uma caneta - afinal, a Izabel era firme e decidida demais para ganhar um presente tão delicado.
Depois, por duas vezes, sem a sua opinião ser solicitada, foi enviada para auxiliar seus familiares com a criação de seus próprios filhos. Perdeu a sua infância, mas, sem saber, criou os seus primeiros filhos.
Passou necessidade. Perdeu a confiança nas pessoas. Silenciou seus próprios sonhos a ponto de perder o contato com as suas necessidades. Tornou-se um mistério (para nós e para si mesma).
Assumir que a conhecemos é pura presunção.
Compartilhar suas últimas semanas de vida comprovou isso - e a minha curiosidade jamais será esgotada. Entrei, pela primeira vez, no quarto 120 sentindo-me totalmente preenchida. Quando saí deste quarto pela última vez, deixando o seu corpo sem vida sobre a cama, senti-me vazia da pessoa que ela havia se tornado.
Dessa pessoa eu recebi pouco e dessa pessoa eu não sei quase nada. Mas a essa pessoa eu entreguei tudo.
Durante o seu internamento, o tempo passava diferente, quase como se não existisse (o relógio do quarto sequer funcionava). As nossas conversas aconteciam em um nível de consciência até então não acessado por nenhuma de nós duas. Experimentamos o sentido mais profundo do estado de presença: o que não acontecesse agora, poderia nunca mais acontecer. Ainda havia tanto a ser dito. Eu a amei todos os dias da minha vida. Mas o dia em que eu a amei mais foi o último.
Meu silêncio interior foi rompido pela súbita percepção do tic-tac do relógio de parede. Trouxe-me à mente as batidas do seu coração (agora aceleradas).
O amor dobrou os meus joelhos e me lançou ao chão.
Abri mão da sua presença em minha vida, abri mão de voltar a ouvir a sua voz e de voltar a ver os seus olhos. Em um passo de fé que não mais acreditava ser capaz de dar, pedi a Deus que amenizasse o seu sofrimento, que a poupasse da dor e do trauma.
Agora vou conhecer o mundo que a minha criança mais temia: um mundo em que ela não existe.
Mas, agora, posso ser, no mundo, o que ela mais admiraria: eu mesma.
💓✨🌹😇
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