terça-feira, 10 de abril de 2018

Condenados à liberdade





Dias atrás, em um programa de rádio, foi trazido o conceito da “Má-Fé de Sartre”.

Tão atual!

Jean-Paul Sartre chamava de má-fé as mentiras que contamos a nós mesmos para nos livrarmos da angústia da liberdade.

Explico.

Dizia ele que, a todo momento, somos senhores de nossas escolhas, somos o resultado de nossas ações. Segundo ele, estamos “condenados à liberdade” – o que seria angustiante, porque liberdade presume responsabilidade.

Para ele, todo o resto seria um mero pretexto ou uma justificativa na qual preferimos acreditar para calar a vergonha de não termos feito melhores escolhas, para sufocar o medo de tomar atitudes.

A nossa liberdade de autodeterminação seria absoluta, apenas fantasiosamente afastada em virtude de crenças equivocadas, como a do determinismo e a do fatalismo.

Como se buscássemos crenças convenientes e confortáveis que nos libertassem da liberdade, mas, no fundo, sabemos que a nossa vida poderia ser muito diferente, caso tivéssemos tomado melhores decisões.

Na vida, não há o que nos salve de escolher. Desgostando do resultado das nossas escolhas, acabamos por nos refugiar na má-fé (apesar de conscientes da verdade que suprimimos).

Em resumo, vivemos com uma “náusea”, uma angústia existencial implícita ao ato de escolher. Completamente livres e completamente sozinhos, tentamos nos livrar de liberdade contando mentiras a nós mesmos: traumas do passado, falta de tempo, barreiras psicológicas, fatores socioeconômicos, metafísicos, históricos.

Dizia, ainda, Sartre:
“Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.”

Ou seja, além de lidarmos concretamente com o resultado das nossas escolhas (responsabilidade), ao escolher algo, atribuímos valor a esta escolha e criamos um modelo de homem que os outros podem seguir – o que faria surgir uma espécie de responsabilidade diante da humanidade.

O existencialismo de Sartre exige de nós uma postura ativa, um compromisso com a própria existência e com o “fazer-se”.

Apesar de soar um tanto radical, trouxe à memória diversas atitudes que eu tomei diante da vida e a face dos (por mim considerados) culpados por situações lamentáveis que enfrentei, trouxe à vista um comportamento padrão, talvez um gatilho.

Cada segundo é o momento ideal para agirmos diferente. As escolhas do passado não precisam ser eternamente mantidas e, ficar na zona de conforto, na grande maioria das vezes, oculta uma zona de verdadeiro desconforto.

Como se autodeterminar?

Como fazer-se?

Que história escreveremos?

A resposta está em como estamos agindo e em que estamos acreditando no agora.

Salve Sartre.

domingo, 1 de abril de 2018

Sobre esquecimentos...




Assisti a um filme que retratava a vida de Alice, uma professora universitária diagnosticada com Alzheimer precoce.

Ela esquece tudo. Esquece a sua grandiosidade, as suas capacidades, as suas habilidades, a sua família. Esquece-se de quem é.

Um hiato no tempo, tal qual o que vivemos - seja em relação ao "grande esquecimento" (decorrente no mergulho na 3D), seja em relação aos nossos pequenos e rotineiros (quiçá propositais) esquecimentos.

Acostumamo-nos à nossa falta de cuidado, à nossa falta de respeito com o tempo e com a experiência, à nossa mais completa falta de profundidade.

Esse passa a ser o nosso proceder: agimos com superficialidade em relação ao que realmente importa e em relação ao que está nas nossas mãos; mas agimos com profundidade em relação ao supérfluo e em relação ao que não podemos mudar.

Somos sedentos por conhecimento - externo.

Somos sedentos por conforto - externo.

Somos sedentos por prazer - externo.

Temos consciência de muitos fatos, somos conhecedores de muitas teorias, estudamos os grandes movimentos sociais e a vida de muitas personalidades.

Tornamo-nos mestres em retórica, grandes críticos, opiniosos. Discutimos política, discutimos religião, discutimos opções sexuais - como se fosse, de fato, possível a algum de nós possuir a verdade.

Mas qual é o tamanho da nossa dificuldade de tocar o outro?

Quão difícil é ceder de corpo inteiro a um abraço?

Por quanto tempo conseguimos olhar uma pessoa nos olhos?

Qual é a real possibilidade de darmos aquele passo difícil em direção àquela pessoa?

Por que nos recusamos a estar disponíveis?

Penso que ver e tocar o outro depende que, necessariamente, passemos por um espaço pessoal no qual estão presentes todas as dores que guardamos, todos os medos que nos impedem o movimento, todo os amores não correspondidos, todas as expectativas frustradas, todos os erros e arrependimentos.

Ou seja, para chegar ao outro, passamos por nós mesmos. Passamos por tudo o que não queremos lembrar, por tudo o que não desejamos ver e por tudo o que não desejamos movimentar.

Como dizia Jung: 

"Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos.”

"As pessoas vão fazer qualquer coisa, não importa o quão absurdo, para evitar enfrentar suas próprias almas."

"Tudo aquilo que não enfrentamos em vida acaba se tornando o nosso destino."


Para mim esse foi o verdadeiro despertar: acordar para mim mesma.

Hoje, eu desejo que essas sejam as minhas memórias: as vezes em que eu vi a mim mesma em cada um de vocês, em que eu percebi que cada conselho que eu dei era para mim mesma, em que eu me senti parte de cada história que eu ouvi.

Não quero lembrar das guerras e revoltas que construíram ou mantiveram as fronteiras. Quero lembrar de todas as vezes que eu me abri e me entreguei.

Não quero lembrar dos heróis. Quero lembrar de todas as vezes em que eu me resgatei de situações que diminuíam o meu valor e me faziam questionar a minha dignidade.

Não quero lembrar de personalidades. Quero lembrar de todas as pessoas que acessaram o meu mundo com amor, que compreenderam o meu tempo, que reconheceram o meu jeito de olhar, que me tocaram com intensidade, que respeitaram e estimularam o meu amor próprio, que acolheram os meus "nãos" sem drama (curvando-se à expressão da minha vontade).

Não quero saber de cor teorias. Quero conhecer e identificar os meus gatilhos, tudo o que me limita, tudo o que me baliza, tudo o que bloqueia o fluir das minhas relações.

Não quero chegar a Deus por meio de técnicas ou de livros. Quero reconhecê-lo em mim por meio da minha mais pura humanidade.

Tal qual Alice, como boa sinestésica, eu coleciono poucas memórias e muitos sentimentos. 

Que eu jamais esqueça que a experiência do "grande esquecimento" não justifica os pequenos esquecimentos.

E, se eu esquecer, que o meu reflexo eu cada um de vocês me sirva de lembrança.

Sat Nam (a verdade é a minha identidade).