sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Refinamento


Fatos não são nada por eles mesmos. 

 

Tudo pode ser "nada" - apenas acontece - se não for percebido e decodificado por um ser humano. 

 

Será que fazemos ideia de quantos acontecimentos escapam à nossa percepção? A vida está acontecendo em diversos níveis. Como selecionamos o que captamos? 

 

Seja como for, parece-me que a vida acontece de forma particularizada para cada ser humano: a cada um conforme os seus filtros, as suas dores e os seus desejos. 

 

Além do nosso estreito foco, somos escravos da nossa capacidade de discernimento, de decodificar a realidade, de interpretar a dinâmica da vida. Tudo é relativo e, ao mesmo tempo, tudo é absolutamente real. O que quer que um ser humano seja capaz de experienciar (ainda que fruto de visão curta ou interpretação equivocada), é real. 

 

É algo como experimentar a comida com uma colher suja de sal. Tudo estará insuportavelmente salgado. 

 

O julgamento da realidade depende exclusivamente das ferramentas que conquistamos e do que está construído em nós (sejamos nós mero resultado das dores que nos impuseram ou o protagonista de uma grande reconstrução). 

 

Vítima ou agente, uma coisa me parece certa: a vida não espera de nós eternas justificativas - sequer nos espera. Concede-nos, apenas, um determinado (e curto) espaço de tempo para usufruirmos da experiência terrena.  

 

O que estamos fazendo com o que fora feito de nós? Eis o nosso trabalho. 

 

Quando o meu tempo findar, espero ter sido capaz de prestar um grande serviço à minha alma, espero ter sido capaz de nutri-la.

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

O elo

 


 

A experiência com o feminino é riquíssima na minha vida.

Desde pequena pude observar diferentes personalidades se desenvolverem ao longo do caminho, todas com algo em comum: a profundidade.

Cada uma e todas entregues a histórias fortes, que exigem nada menos que transcendência, sob pena de colapso.

Não conheci meio termo: ou encaramos o abismo (e frutificamos) ou somos levadas pela poeira do mundo (e nos vitimizamos).

Não diria que as mulheres mergulham, parece-me que são capturadas por águas profundas. Um deixar-se levar, quase como uma resignação à sua natureza.

Testemunhamos milagres.

Guardamos, em nossos ventres, o espaço sagrado por meio do qual o trânsito da vida acontece – não há nada na fisicalidade que possa tocar o divino como o corpo de uma mulher.

Nutrimos e recepcionamos os seres corajosos que vivem a experiência humana.

Ouso afirmar que, quando conectadas à nossa verdadeira natureza, nosso universo interior passa a ser mais real que a vida que acontece diante dos nossos olhos.

Sustentamos a ponte entre o visível e o invisível. Somos o elo.

Celebro, hoje, a incansável força da vida.

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Mais uma flor o vento levou


 

Penso que as nossas crenças são verdadeiramente testadas quando enfrentamos a partida das pessoas que amamos.

A despedida é inevitável, seja qual for a crença com a qual nos afinamos.

De acordo com o que eu acredito – e essa é a premissa da minha opinião – nascemos e renascemos dentro de infinitas combinações (e, sinceramente, o porquê disso ocupa mais o meu pensamento, que a realidade da sua ocorrência).

O que a minha percepção é capaz de alcançar, é a existência de almas que se dedicam ao melhoramento dessa experiência produzindo, para isso, incontáveis enredos.

Percebam que eu mencionei o aprimoramento da experiência – e não a cura de almas perdidas, pecadoras ou coisa que o valha.

Ouvi, esses dias, um rabino trazendo uma breve descrição sobre a reencarnação, sob a sua perspectiva. Dizia ele: “Se você contrata um pedreiro e ele não conclui a obra a contento, você o chamaria para corrigi-la? Por certo chamaria um mais competente. Como sou eu que continuo retornando a essa experiência, deve ter algo muito especial que apenas eu posso realizar – e isso me torna indispensável para o aprimoramento desse lugar no universo”.

Ele prosseguiu dizendo que “enquanto determinadas crenças buscam alçar o ser humano à iluminação, ele acredita que o melhor a se fazer é transformar o pequeno mundo que nos rodeia em um lugar em que Deus possa habitar” – pois, segundo ele, esse foi, desde o início, o desejo do Criador.

Penso que as almas são dotadas de propósitos que as mentes humanas são incapazes de assimilar. Talvez Talita seja apenas uma pequena experiência de uma alma que escolheu mergulhar nessa aventura.

Isso me torna tão desimportante.

Por outro lado, isso me torna tão útil, tão necessária.

A verdade é que passamos a maior parte da vida distraídos com o enredo, sem sermos capazes de perceber a eternidade que permeia tudo o que produzimos (ou que seríamos capazes de produzir) em uma vida – e o tempo para isso é tão curto (!).

Apenas a morte nos aproxima do essencial. Apenas quando assistimos os corpos e as mentes dos nossos amores incapazes de prosseguir nessa aventura, é que voltamos a nossa atenção às perguntas básicas: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o objetivo? Voltaremos a nos encontrar (ou reencontrar)?

Todas elas sinalizam algo que, inconscientemente, sabemos: daqui não somos.

Dentre muitíssimas outras possibilidades, aqui estamos e assim somos.

Jamais reviveremos os segundos que já assistimos passar.

Jamais reviveremos os mesmos enredos, com os mesmos personagens.

Por isso a vida é tão preciosa.

Grandes amigos que se encontram, grandes amigos que se despedem sem saber como e quando voltarão a se reencontrar.

Grandes rivalidades que podem se transformar em grandes admirações.

Grandes desconfortos que podem se transformar em grandes saudades.

“Como nos relacionamos com a morte” tem muito a ver com “como nos relacionamos com a vida”.

No momento da despedida sabemos imediatamente o que deixamos de dar e o que não soubemos receber. E, dentre todos os arrependimentos, o amor não oferecido pode ser um fardo bastante pesado a se carregar.

Em regra, apenas no momento da morte é que percebemos o quanto falhamos em aceitar as peculiaridades da pessoa que partiu, o quanto fomos incapazes de enxergá-la e entendê-la.

Uma escolha consciente – apenas uma – é o que nos separa de um “até breve” mais digno.

Eu escolho receber, absorver, experienciar, enxergar, apoiar e amar a todos os que escolheram caminhar ao meu lado.

Eu escolho trocar as lágrimas da despedida, pela capacidade de desfrutar da companhia de cada um dos meus amores, enquanto estiverem presentes.

Em memória de uma alma que foi vista em meio à sua incapacidade de tocar a realidade, que foi apoiada e protegida em sua vulnerabilidade e que, sem arrependimentos, foi entregue ao mundo dos vivos.

 

domingo, 24 de dezembro de 2023

Seremos cúmplices, se assim quiser.

 


 Os conceitos de Natal e Páscoa representam o início e o fim de uma jornada.

O nascimento e o renascimento de um ser que, por propósito, se fez homem e mostrou à humanidade um caminho possível.

Seja a história como for e seja o propósito qual for, ela serve a cada um de nós.

Como todos nós, aqui ele travou conflitos internos e externos. A diferença, nessa história de vida, é que ele soube amar, soube compreender e perdoar, soube sustentar a sua verdade e os seus valores (mesmo sendo incompreendido), soube discernir os limites que deveria respeitar e os que poderia elastecer, soube a quem acolher e a quem desenvolver: quem assim desejava.

Eu sou essa pessoa que deseja.

Milênios se passaram, mas os seus olhos sorridentes aqui ficaram e, ainda hoje, assentem com os desejos sinceros verbalizados no íntimo dos nossos corações. É quase como se dissesse: seremos cúmplices.

Nós mesmos nos elegemos. Somos quem deve escolher, trabalhar, observar, selecionar e, assim, passar a habitar as frequências que estão disponíveis a todos nós.

Tudo nos é possível, mas quase nada está ao alcance das mãos. Essa é a nossa jornada.

O caminho de cada um de nós inspira os passos de toda a humanidade.

 

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

A arruda e o tamanho do nosso mundo

 


 O nosso mundo se limita à nossa capacidade de compreensão.

A arruda me lembrou disso. A cheirosa amarelou. Os ramos rareavam enquanto os entrenós se afastavam e as extremidades se enfeitavam de flores.

Por já ter dedicado muito tempo a observá-la (e fotografá-la: fica linda após uma garoa), eu sabia o que os seus galhos alongados pediam: uma boa poda.

A arruda, quando floresce, entra em ciclo de perecimento. É preciso libertá-la das flores (e privarmo-nos do perfume), para que ela ganhe o direito de experienciar uma nova primavera. Mas, naquele momento, eu me sentia incapaz de fazê-lo. Era preciso esperar que as flores deixassem de ser visitadas pelas abelhas.

Poda feita, em poucos dias o amarelado se foi e pequenos brotos começaram a surgir.

Eu poderia ter simplesmente assumido que a arruda havia sido acometida por um “seca-arruda”. Mas, se eu assumisse que alguém a havia secado, não teria encontrado uma solução para a sua enfermidade.

Entretanto, eu conhecia o seu ritmo, os seus ciclos e fui capaz de identificar as suas necessidades.

Nem sempre – ou quase nunca – a solução de um problema pode ser encontrada buscando um culpado (o que serve, apenas, para afastar de nós a responsabilidade pela nutrição das relações). Clara demonstração de inabilidade.

A maior parte de nós atravessa a vida incapaz de perceber e compreender o seu entorno. Perdemos a curiosidade. Contentamo-nos em conviver com a superficialidade, quando poderíamos entrelaçar firmemente os dedos (uns com os outros) e, com os olhos e lábios da alma, clamar: mostre-me você.

Centrados em nossos dramas - personagens principais de nossa história -, não reconhecemos e não respeitamos o ritmo, os ciclos e as necessidades dos nossos companheiros de jornada.

Quanto a mim, coleciono esses momentos (fotografia autoral).

 

Sobre as formigas

 


Certa vez, sentei-me em frente a um terapeuta e ele começou a sessão dizendo: vou desenhar você. Acho importante dizer que foi a minha primeira vez em um terapeuta.

Desenhou um baita rabisco.

Disse: “Nada se perde no universo, o que você não usa, por algo ou alguém é utilizado. Você é um emaranhado de energia não canalizada. Emana saborosa energia que não está sendo desperdiçada.”

Demorei para entender. Afinal, onde estão os mentores, os anjos, os protetores, enquanto a minha força de vida é tomada por sabe lá o que?

Ninguém espanta formigas pedindo que elas saiam. Espantamos formigas tornando inviável a sua permanência.

Onde não houver alimento disponível, não haverá formigas – por isso, as formigas me lembram de me apropriar do meu espaço pessoal e mantê-lo asseado.

Isso funciona com quase tudo.

Ação. Direcionamento consciente da própria energia. Seleção. Delimitação de espaço. Imposição de respeito. Consistência.

 

Assim ela me ensinou.

 

 


Há alguns dias eu tive um sonho.

A história era representada por uma pessoa que simboliza, para mim, limitação de autonomia em termos de gestão de vida, de capacidade de nutrir relações, de lidar com conflitos.

No sonho, essa pessoa se oferece para me levar até algum lugar e eu me espanto, porque ela sequer dirige.

Ela se sentou ao volante e a minha primeira percepção foi: não é que ela dirige bem?

Mas ela seguiu dirigindo para o lado oposto ao que deveria ter seguido. Ela percebeu a minha contrariedade e apenas sinalizou que eu observasse e aguardasse.

Em dado momento, o caminho que eu teria escolhido e o caminho que ela escolheu se uniram. Apenas contornavam, por lados opostos (quase espelhados), o mesmo obstáculo. Então, à frente, havia um único caminho.

Eu entendi.

Cada pessoa, por mais limitada que nos pareça, deve ter a oportunidade de fazer as próprias escolhas, afinal, todos os caminhos levam a um fluxo único – da constante evolução. Quem sou eu para escolher, pelo outro, o caminho mais adequado? Quem sou eu para afirmar que uma estrada oferecerá melhores aprendizados (ou maior velocidade) que outra? Quem sou eu para afirmar que a paisagem pela qual eu escolhi transitar é a mais bonita?

Assim me ensinou essa pessoa: apenas sou totalmente responsável pelas minhas próprias escolhas, pelo meu plantio, pelos valores que cultivo. 

Eu sou o meu próprio compromisso.