segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Eu, Lírio.



Há dois anos venho regando um lírio que nunca floresceu.

Lembro-me do dia em que o ganhei de presente.

Lembro-me do pequeno bulbo nas mãos da Carmen, envolto em um tule branco.

Plantei-o imediatamente.

Rapidamente brotou, surgiram lindas e longas folhas, que mais pareciam cachos.

Enfeitei o seu vaso, enriqueci a terra, mudei de posição.

Nada.

Por algum motivo, eu achava que ele estava ligado ao meu crescimento, que ele floresceria quando eu também florescesse. O que eu estava fazendo errado?

Até o dia em que tudo mudou e percebi que a única coisa errada era o meu ponto de vista.

Percebi: para mim, ele sempre foi um lírio, ainda que não estivesse suficientemente maduro (ou seguro) para desabrochar e oferecer flores. Sempre um lírio.

Talvez seja assim que o Criador me vê: puro potencial! Ele sabe quem sou e do que sou capaz.

Mesmo que, muitas vezes, eu seja apenas longos cachos que precisam de cuidados, em outros momentos sou a flor capaz de perfumar todos os ambientes.

sábado, 19 de setembro de 2020

Eu, babosa




Eu tenho uma babosa especial. 

Folhas largas, longas, carnudas. Um verde difícil de descrever. 

Pura potência. 

Ela ficou grande demais para o vaso em que estava e, depois de anos, decidi transferí-la a um vaso maior e deixá-la ao sol (ouvi dizer que as babosas adoram). 

Suas raízes estavam crescendo em círculos, emaranhando-se em torno dos limites do vaso. 

Coloquei-a em um vaso maior, no qual pudesse esticar suas raízes. Deixei-a do lado de fora da casa, para que pudesse sentir o sol, a chuva, os ventos. Para que pudesse conhecer os pássaros e as borboletas. 

O resultado não foi o esperado. 

Ela não reagiu com vivacidade. 

Seu verde tornou-de lilás e suas folhas, sempre tão firmes, murcharam ao sol. Vi-me ali. 

Quantas vezes a vida, por amor à evolução, moveu meu chão e eu pensei: jamais voltarei a ser a mesma (de fato, nunca mais fui).

Em vez de sentir o prazer da liberdade e a curiosidade pelo novo, senti-me sozinha e insegura. 

O amor que me sustentou, sustenta, agora, a babosa. 

A babosa de um lilás indescritível.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Profundamente

 


Tempos difíceis nos permitem explorar as nossas fraquezas.

Quando não há distrações, quando não há para onde fugir, encarar as verdades por trás das aparências é obrigatório.

Podemos passar a vida observando as nossas águas rasas, falando sobre a linda paisagem espelhada em sua superfície, sobre os visitantes que nela se divertem no verão. Podemos falar sobre os invernos solitários, sobre as noites de tempestade, sobre o vento que sopra do norte, cobre a superfície de entulhos e turva a nossa visão.

Mas, um dia, inevitavelmente, teremos que mergulhar. Lá no fundo, onde não vemos reflexos externos, onde o vento, o inverno e verão não chegam, onde a única paisagem existente é a força que sustenta o nosso caminhar.

São águas escuras.

Descemos tateando os pilares que sustentam cada uma das nossas crenças e, veremos, não chegam ao fundo. Estão à deriva, enredados, apenas, nos nossos pensamentos.

O que guia o nosso caminho até o fundo são pilares mais simples e mais robustos, que jamais havíamos visto da superfície. Estavam eclipsados pela paisagem, pela euforia dos verões, pela solidão do inverno.

Sua estrutura imponente parte da nossa essência e, raramente, atravessa a superfície.

O que sabemos de nós mesmos, se nos confundimos com a paisagem, com os reflexos, com as mudanças exteriores?

O que compreendemos da vida, se construímos a nossa história sobre pilares desconectados da nossa verdade interior, que se movem e nos movem conforme o desígnio de forças exteriores?

O que é transitório, o que é eterno?

O que podemos extrair dessa experiência e fará parte de nós pela eternidade?

O que é capaz de nos libertar e o que apenas vai nos aprisionar?

Confesso, na turbulência da superfície, muitas vezes eu me sinto prisioneira. Prisioneira do passado, prisioneira do futuro.

Apenas a profundidade me liberta.