sábado, 28 de junho de 2025

A Menina da Lanterna

 

Houve coisas que eu demorei para aprender.

Durante anos, eu estive completamente indisponível para o entendimento – apesar de totalmente aberta para o conhecimento.

Curiosa, extrovertida, rápida, espirituosa.

Fui a personificação daquele discurso (insuportável): uma menina que tem tudo, que nunca passou necessidades, sempre rodeada de pessoas e de muito amor. Afinal, o que poderia estar faltando?

Eu não sabia, mas sentia falta de mim mesma, de dirigir o meu olhar amoroso e compassivo para mim mesma. De tomar contato com quem eu realmente era.

Precisei construir com as minhas próprias mãos a ponte entre mim e quem eu sou – embora não soubesse o que estava construindo. Desde então, caminho sempre acompanhada.

Qual não foi a minha surpresa ao presenciar, em uma escola que aplica a Pedagogia Waldorf, crianças com menos de seis anos construindo, de forma lúdica, as suas próprias pontes.

Crianças disponíveis, férteis e livres, assistindo os seus próprios pais romperem barreiras pessoais para representarem, em um teatro, a fábula da Menina da Lanterna.

Uma menina que, assim como eu, não estava em contato com a sua luz. Que, assim como eu, buscou respostas e clamou por sinais. Que transitou por morros e vales. Que pediu ajuda.

Assim como ela, em um amanhecer qualquer, encontrei-me. Pisava o chão com mais firmeza. Olhava-me com mais respeito. Amava-me com mais profundidade.

Acredito ter ouvido a minha alma sussurrar: “Hoje, quem se curva na sua presença sou eu. Você, que escolheu o trabalho mais difícil: ser humana, viver a ilusão da completa desconexão, tatear o caminho com as pontas dos dedos. Você, que despertou em meio ao caos, que personificou a gentileza em um mundo de individualismo, que abriu os olhos do coração.”

Nesse momento, senti que isso era tudo o que eu buscava e tudo o que eu não podia perder. A única validação necessária – a do meu próprio ser – dependia, apenas, da minha absoluta integridade.

Assim como a Menina da Lanterna, plena de mim mesma, em contato com a força da (minha) vida, permito-me extravasar, permito-me oferecer suporte, permito-me estar presente e disponível, permito-me servir de instrumento.

“Apenas toque a vida com delicadeza” – sim, ainda conversamos através de sussurros.


 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

A medida e a profundidade dependem de nós

 

 
Foto: Melanie d'Haese

 

Então, perguntaram-me: você se recorda de quando passou a se sentir verdadeiramente amada?

A pergunta trouxe em si uma afirmação, um reconhecimento de que eu me sinto verdadeiramente amada. Pediu, apenas, que eu reconhecesse essa sensação e tentasse compreender quais fatores foram capazes de mudar a minha perspectiva sobre o amor.

Naquele momento (juro) eu fui capaz de respirar o amor. Em uma pausa - que valeu por uma vida - eu gravei o reconhecimento do amor em todas as minhas células. A segurança, o pertencimento, a confiança, a esperança, a utilidade intrínseca à minha existência.

Nada na minha vida havia mudado drasticamente. Fisicamente, minha vida não causaria surpresa em ninguém com quem não converso há alguns anos. Advogada, esposa, mãe - a correria de sempre.

Contudo, internamente, sinto-me um imenso jardim. Minha vida interior é riquíssima - experiência com a qual eu sequer sonhava e sou incapaz de traduzir. 

Tentei recordar o caminho e dias muito difíceis vieram à memória.

Fui esculpida por mudanças de curso, por batalhas invisíveis, por dores silenciosas, por decisões difíceis, por perdas dolorosas. Em meio à dor e ao medo, recordo-me de ter mantido um profundo amor ao processo. Curvei-me incontáveis vezes em reverência à oportunidade de me conhecer um pouco mais.

Recuperei um pedaço de mim a cada não que eu disse ao caminho que me era oferecido - afinal, eu estava construindo um caminho.

Muitos foram incapazes de me compreender, mas eu compreendia.

Muitos foram incapazes de confiar nas minhas escolhas, mas eu confiava. 

Muitos foram incapazes de reconhecer os meus valores (e os anseios que me guiavam), mas eu reconhecia.

Pensei:

  • E se o amor que (hoje) eu sou capaz de receber for, exclusivamente, o que eu sou capaz de oferecer a mim mesma?

 

Afinal, somos incapazes de perceber e de assimilar o que, em nós, não existe ou não é trazido à consciência. Seja conhecimento, sejam sentimentos.

Até lá, vivemos nos relacionando com a idealização de algo que nos é estrangeiro. Tudo que nos entregam parece insuficiente. A forma com que nos entregam parece inadequada.

O amor não é, senão, um reflexo.

Então, quando foi que eu me senti verdadeiramente amada? Quando eu entendi que eu era confiável, quando eu entendi que eu precisava ser quem eu desejava encontrar, quando eu entendi que a existência contava com o meu desenvolvimento para completar o seu projeto.

Eu me sinto útil à existência - e esse é o único valor que me interessa ter.

Eu sinto a força da vida fluindo e transbordando através de mim - e essa é a única função que me interessa ter.

Eu me sinto amparada e apoiada por forças invisíveis - e essa é a única conquista que me interessa ter.

Só podemos ser amados na medida e na profundidade com que nos amamos.

 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Refinamento


Fatos não são nada por eles mesmos. 

 

Tudo pode ser "nada" - apenas acontece - se não for percebido e decodificado por um ser humano. 

 

Será que fazemos ideia de quantos acontecimentos escapam à nossa percepção? A vida está acontecendo em diversos níveis. Como selecionamos o que captamos? 

 

Seja como for, parece-me que a vida acontece de forma particularizada para cada ser humano: a cada um conforme os seus filtros, as suas dores e os seus desejos. 

 

Além do nosso estreito foco, somos escravos da nossa capacidade de discernimento, de decodificar a realidade, de interpretar a dinâmica da vida. Tudo é relativo e, ao mesmo tempo, tudo é absolutamente real. O que quer que um ser humano seja capaz de experienciar (ainda que fruto de visão curta ou interpretação equivocada), é real. 

 

É algo como experimentar a comida com uma colher suja de sal. Tudo estará insuportavelmente salgado. 

 

O julgamento da realidade depende exclusivamente das ferramentas que conquistamos e do que está construído em nós (sejamos nós mero resultado das dores que nos impuseram ou o protagonista de uma grande reconstrução). 

 

Vítima ou agente, uma coisa me parece certa: a vida não espera de nós eternas justificativas - sequer nos espera. Concede-nos, apenas, um determinado (e curto) espaço de tempo para usufruirmos da experiência terrena.  

 

O que estamos fazendo com o que fora feito de nós? Eis o nosso trabalho. 

 

Quando o meu tempo findar, espero ter sido capaz de prestar um grande serviço à minha alma, espero ter sido capaz de nutri-la.

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

O elo

 


 

A experiência com o feminino é riquíssima na minha vida.

Desde pequena pude observar diferentes personalidades se desenvolverem ao longo do caminho, todas com algo em comum: a profundidade.

Cada uma e todas entregues a histórias fortes, que exigem nada menos que transcendência, sob pena de colapso.

Não conheci meio termo: ou encaramos o abismo (e frutificamos) ou somos levadas pela poeira do mundo (e nos vitimizamos).

Não diria que as mulheres mergulham, parece-me que são capturadas por águas profundas. Um deixar-se levar, quase como uma resignação à sua natureza.

Testemunhamos milagres.

Guardamos, em nossos ventres, o espaço sagrado por meio do qual o trânsito da vida acontece – não há nada na fisicalidade que possa tocar o divino como o corpo de uma mulher.

Nutrimos e recepcionamos os seres corajosos que vivem a experiência humana.

Ouso afirmar que, quando conectadas à nossa verdadeira natureza, nosso universo interior passa a ser mais real que a vida que acontece diante dos nossos olhos.

Sustentamos a ponte entre o visível e o invisível. Somos o elo.

Celebro, hoje, a incansável força da vida.