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sexta-feira, 15 de março de 2019

Abraçando o Eu: Unificando




Há alguns anos, em uma reunião, um ser se dirigiu até mim e disse: “como pode, uma mulher que inspira tantas outras, mais velhas, mais novas, fragmentada desse jeito?”

Não é possível contar o número de vezes que voltei a esse momento. Busquei incessantemente os pedaços que faltavam em mim.

Revirei a minha história em busca das Talitas que havia deixado para trás, convidando-as a seguirem o caminho comigo.

Acessei cada trauma, cada dor, cada arrependimento, cada sonho não realizado. Colei os cacos e senti:

- Essas dores não são mais minhas; esses sonhos não são mais meus. Por que, então arrastá-los comigo?

Não estava li a resposta que eu buscava.

Até que, então, a fragmentação se apresentou com outra face: a da repressão.

Eu, reprimida? Não parecia possível, mas segui aberta à compreensão dos conceitos.

Para a psicanálise, o conceito de repressão seria:

“Mecanismo mental inconsciente, pelo qual as ideias ou os impulsos indesejáveis e inaceitáveis para a consciência são suprimidos por ela e impedidos de entrar no estado consciente. Este material indesejável não está geralmente sujeito à recordação voluntária consciente. A essência da repressão consiste em afastar uma determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância (no inconsciente). Entretanto, o material reprimido continua a fazer parte da psique, apesar de inconsciente, e continua a causar problemas. Segundo Freud, a repressão nunca é realizada de uma vez por todas e definitivamente, mas exige um continuado consumo de energia para se manter o material reprimido.

Identifiquei a repressão em dois fluxos contínuos: de fora pra dentro e de dentro pra fora. Uma verdadeira compressão.

A força externa, como uma construção social, familiar e religiosa que nos diz quem e como devemos ser para sermos partes integrantes dos nossos grupos.

A interna, por outro lado, consiste em uma busca desenfreada pela luz, suprimindo uma infinita gama de impulsos conscientes e inconscientes, instintos e desejos, que poucas vezes encontram uma maneira equilibrada de serem expressados.

Ou seja, de um lado da corda estão os nossos impulsos primários (que reprimimos, por não sabermos lidar com eles) e, do outro, os sistemas aos quais pertencemos, que nos dizem exatamente como devemos que ser para nos encaixarmos, então criamos personas – uma para cada ambiente.

Lembrei-me da famosa frase de Simone de Beauvoir, que tantas vezes invoquei para repudiar toda e qualquer tentativa de limitação do meu ser, sem perceber a sua real profundidade:

“Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.”

Pedi ajuda ao tarô e, sem nenhuma surpresa, a carta que resumiu a situação foi o Diabo, a carta XV.

Esta carta está perfeitamente inserida entre a Temperança e a Torre.

Esse arquétipo surge quando estamos com os vasos cheios, equilibrados, plenos, colocando em cheque o nosso poder pessoal. O que quer que criemos não escapará à prova da torre: tudo que for filho do ego ruirá, todos os nossos castelos de areia.

Socorri-me de Jung. Abrindo o livro Jung e o Tarô em uma página aleatória, deparei-me com a imagem do quadro “A Cigana Adormecida”, de Rosseau, seguido da seguinte frase:

“O sono da cigana é visitado pelos sonhos de sua perdida alma animal; a fera, inquieta, fareja o mistério da humanidade, ansiando por tocá-lo.”

Havia, ainda, uma frase de Aniela Jaffé:

“Os instintos suprimidos e feridos são os perigos que ameaçam o homem civilizado; os impulsos não reprimidos são os perigos que ameaçam o homem primitivo. Em ambos os casos o “animal” é alienado de sua verdadeira natureza; e para ambos, a aceitação da alma animal é condição da totalidade e de uma vida plenamente vivida. O homem primitivo precisa domesticar o animal em si mesmo e fazer dele o seu companheiro útil; o homem civilizado precisa curar o animal em si e torna-lo seu amigo.”

Não, a página aleatoriamente aberta, apesar de integrada ao assunto, não tratava da carta do Diabo. Eu estava lendo sobre a carta XI, a Força.

No livro Criando União, de Eva Pierrakos e Judith Saly, o Guia nos ensina que “Não basta desenterrar a história de nossa infância e associar o relacionamento atual às primeiras experiências com o pai ou com a mãe, embora estas sejam muito significativas e forneçam muitas pistas. Também é preciso descobrir, no quadro de nossa alma, o eu inferior e seus efeitos. Sem olhar de frente o que menos nos agrada a nosso próprio respeito, não podemos entender por que não conseguimos fazer uma mudança significativa. Muitos problemas da área dos relacionamentos são provocados pelos sentimentos e pelos pensamentos ocultos no inconsciente. Esses pensamento e sentimentos não investigados têm uma lógica peculiar, errônea e infantil. Provocam conflitos na alma. Com a alma em guerra, como você poderia ter um relacionamento saudável com alguém? Os pensamentos e sentimentos contraditórios não resolvidos no eu precisam, em primeiro lugar, ser trazidos à luz. (...) As tendências destrutivas inconscientes só podem ser desfeitas quando são enfrentadas e entendidas.”

Para Jung, grande parte da comunicação que estabelecemos com o nosso inconsciente se opera por meios dos sonhos. Animais, objetos, sentimentos – para cada pessoa uma simbologia própria, repudiava as generalizações. Por isso, estabelecer uma comunicação com o inconsciente era, para ele, indispensável.

Peguei, então, a carta do Diabo nas mãos e, guiada por Sallie Nichols (escritora do livro Jung e o Tarô), passei a observá-la e entrei em contato profundo com o arquétipo, a ponto de experimentá-lo e senti-lo por vários dias.

Uma observação rápida do desenho já nos deixa confusos. Talvez seja, a confusão, o principal trunfo do Diabo.

O corpo do Diabo é formado por várias partes que, partindo da lógica, não se conectam – o que me lembrou das nossas diversas personas, do quanto tentamos nos adaptar aos ambientes, do quanto somos moldados. Acabamos nos tornando um acumulado de penduricalhos, cada vez mais afastados da nossa essência.

O Diabo tem seios artificiais e rígidos, remetendo-nos a um feminino mecânico e agressivo.

Com a mão esquerda, segura uma espada pela lâmina. A espada, como se sabe, é o símbolo do masculino e das altas hierarquias. Ele faz chacota com tudo isso. Simboliza um masculino desequilibrado e um instrumento mal utilizado (que fere a si mesmo).

Representa o poder desordenado. Gaba-se da sua invulnerabilidade. Arrogante e indiferente a qualquer poder que não seja ele mesmo.

Ou seja, ambos os princípios criativos em desequilíbrio.

Possui, ainda, asas de morcego, o que nos remete às forças que operam na escuridão, momento em que os seres humanos estão mais vulneráveis, mais desprotegidos. No momento em que abrimos a guarda, suga a nossa essência.

Jung segue ressaltando que não podemos deixar de nos atentar para o fato de que o ser que intitulamos Diabo é um anjo, um portador da luz que caiu dos céus. Em diversas pinturas antigas, a sua representação aparece como sendo a sobra do próprio Jesus, sugerindo que o Diabo está a serviço do Criador.

Existe, no antigo testamento, a seguinte frase:

Para que saibam todos, que do nascente ao poente, não há ninguém além de mim. Eu Sou o Eterno, e não existe nenhum outro! Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; Eu, Javé, faço absolutamente tudo!

Certamente a escuridão faz parte do plano divino.

Na mitologia, grande parte dos deuses possui porção humana bastante destacada. Eles sentem raiva, sentem desejo, embriagam-se, arrancam cabeças.

Todas essas representações significam que possuímos, todos, parcela de escuridão. O Diabo representa a nossa sombra monstruosa, a nossa propensão para o mal, o nosso potencial de destrutividade, a nossa dificuldade em assumir a responsabilidade pelas nossas próprias escolhas, abrindo mão do nosso poder pessoal em favor das instituições.

Menciona Jung:

“Estar servil e inconscientemente preso, nem que seja ao mais altruístico dos códigos, marca tão seguramente uma pessoa como criatura do Diabo, quanto ser vítima dos próprios apetites animais.”

Ele representa o que rejeitamos em nós, o que não queremos ver e, então, não acessamos e não conhecemos – mas que rege a nossa vida a partir das profundezas.

Nesse sentido, novamente trecho do livro Criando União:

“Só quando existe coragem e honestidade para ver e aceitar no seu todo as emoções e os desejos prejudiciais; só quando é capaz de compreendê-los e avaliá-los completamente, é que se percebe, sem sombra de dúvidas, que eles são supérfluos como defesas e não servem a nenhuma outra finalidade.(...)
No decorrer do trabalho de um programa de autotransformação, tanto homens como mulheres deparam com padrões idênticos do eu inferior. Tomam conhecimento da falsa agressividade, hostilidade, violência, excesso de atividade, impaciência e recusa de esperar que os poderes cheguem à fruição no devido tempo. Também tomam conhecimento da falsa receptividade e da falsa entrega, ou seja, da negação da responsabilidade por si mesmo, da acomodação, da aceitação da linha de menor resistência. A tentativa de encontrar uma autoridade que assuma o que é, de fato, responsabilidade de cada um, é uma das formas de fugir à prestação de contas. Tanto homens como mulheres, portanto, precisam solucionar os mesmo problemas, porém sua interação se dá em um plano complementar e não idêntico. (...) Nada que permaneça oculto pode crescer; vocês sabem disso.

O descaso com as nossas fraquezas e a resistência em aceitá-las faz com que elas sejam projetadas constantemente no meio externo, como se agissem contra nós.

Precisamos trazer à consciência. Precisamos acolher e conhecer as partes reprimidas de nós mesmos.

É isso o que o Diabo nos fala: na escuridão reside o seu maior potencial de crescimento!

E ele pode nos ensinar a navegar na escuridão do nosso ser.

Repressão, fragmentação, dificuldade de lidar com o poder pessoal. Não podemos passar de certo ponto se não acessarmos o nosso “Eu Inferior”. Conhecê-lo e acolhê-lo constitui um trabalho indispensável de lapidação pessoal e de pacificação social.

A tão sonhada plenitude. A tão sonhada integridade. A tão sonhada unidade. Todas começam dentro de nós.

Lembrem-se, nós não somos as experiências, somos quem está experienciando. Nós aceitamos o propósito da experiência neste orbe, com a certeza de que o resultado seria positivo tanto para nós, quanto para o planeta.

Precisamos, apenas, tomar consciência do que ocultamos em nosso inconsciente, para que deixemos de projetar o nosso caos interior no externo. Precisamos deixar que os nossos “feios” e “errados” atravessem a fronteira, para que os vejamos, para que os sintamos e, então, sejam transmutados pela consciência e devolvidos ao planeta mais leves e mais elevados.

Somente assim passaremos a fazer escolhas mais sábias, mais responsáveis e mais alinhadas com os nossos objetivos. Somente assim teremos relacionamentos de valor, baseados na mais pura reciprocidade e conexão. Somente assim a nossa motivação será verdadeira e divina, pois livre da cisão que outrora havia entre a nossa consciência e a nossa inconsciência.

Durante esses dias de conexão com o arquétipo do Diabo (garanto que foram muitos), eu fui apresentada às mais diversas experiências. Em todas elas eu o via atrás de mim com as mãos em posição de suporte, como se dizendo:

- Tente agora com um pouquinho mais de força de vontade! Relacione-se com o seu animal e, ao lado dele, atravesse a floresta escura do seu ser. Assuma a responsabilidade pelas suas escolhas e, de fato, escolha – mas não use mais a mim ou a Deus como bodes expiatórios! Mantenha o foco no prazer: prazer de viver, prazer de se encontrar, prazer de crescer, prazer de se relacionar. Tire o foco do “o que” e coloque-o no “por que”, alinhando as suas ações e as suas motivações com os seus objetivos. Eu estarei aqui até o fim dos tempos para te lembrar que luz e escuridão são frutos da mesma árvore e que a integração da dualidade é uma riquíssima experiência.

Finalizo com um trecho do livro “Gente que mora dentro da gente”, de Patrícia Gebrim:

“Pois bem, imagine que antes de vir para cá, ainda lá no céu, ela tenha feito um trato com seu pai, o Sol. E o trato era mais ou menos assim: ela ganharia uma passagem de vinda para a Terra, e, em troca, ajudaria a curar um pouquinho do planeta. Não parecia demais; afinal, ela iria se divertir de montão, e ainda teria a oportunidade de sentir o aroma das flores, brincar numa cachoeira, ver o mais lindo pôr-do-sol e muito mais! Uma viagem e tanto, com direito a aprender um monte de coisas diferentes.
O preço parecia justo.
Depois que tudo ficou acertado, a estrelinha, feita da mais pura luz, mergulhou em direção à Terra e chegou no setor de recepção do planeta para conseguir um corpo no qual pudesse se aninhar. Tinha que ser um corpo de carne e osso, feito com a mesma matéria do planeta.
A chegada da estrelinha foi mais ou menos assim:
- Estrela: “Acabei de chegar ao planeta e preciso de um corpo onde eu possa me aninhar”.
- Guardião da Terra: “Seja Bem-Vinda! Você sabe que precisará dar uma mãozinha na cura do planeta enquanto estiver por aqui, não sabe?”
- Estrela: “Sei, sim. Pensei que eu poderia me responsabilizar por um pouco de inveja... hã... e talvez um pouco de tristeza também.”
- Guardião da Terra: “Que bom... Será que você daria conta de um pouquinho de ódio? Tem tanto por aqui... ia ser ótimo se você nos ajudasse a transformar um pouco em amor!”
- Estrela: “Acho que dou conta sim. Me dá também um pouco de medo, ok? Mas só um pouquinho.”
Aí, o Guardião da Terra separou uns vidrinhos com tudo o que a estrela tinha pedido, misturou com um pouco da terra do planeta, moldou bem e colocou a estrelinha lá dentro. Depois cuidou para que esse molde fosse encaminhado para a família mais adequada, uma família que a ajudaria a cumprir o que tinha prometido fazer durante sua estadia por aqui.
“Boa Sorte, Estrela!
Assim nascemos, poeira de estrelas disfarçada de gente, andando por aí. Tudo ia muito bem até que, em determinado momento de nossas vidas, ainda na infância, todos aqueles sentimentos que o Guardião da Terra tinha misturado no nosso corpo começam a acordar. E a sombra que mora no planeta começa a vir a tona através de nós.
Inveja, tristeza, ódio, medo...
Só para esclarecer, esse Eu, essa mistura de terra com todos aqueles sentimentos que precisamos curar, é o que estou chamando de EU INFERIOR, ok?
Todos nós temos um Eu Inferior. Relaxa, você não é o único!
Muitas pessoas se sentem culpadas por terem um Eu tão feio assim, que rosna e baba nas pessoas, isso sem falar nas mordidas que distribuímos por aí! Mas não há motivos para você se sentir mal por ter um Eu Inferior.
Sempre que você der de cara com o bicho feio que mora em você, lembre-se: esta é a sua chance de curá-lo e, ao fazer isso, você estará ajudando a purificar um pouco do planeta. E ISSO FOI O QUE VOCÊ VEIO FAZER AQUI.
Toda vez que conseguir se lembrar da sua luz, toda vez que conseguir transformar esses sentimentos negativos em algo melhor, cada vez que reciclar um pouquinho desse lixo que está dentro de você (e de todos nós), estará participando ativamente da cura da Terra.
Estamos de acordo?”

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