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terça-feira, 2 de junho de 2020

Minha primeira Maria



A minha Vó, minha primeira Maria, nasceu em 1920.
 
Até casar - aos 16 anos - estudou em um colégio interno que ficava a quase 300km da cidade em que moravam os pais. Duas vezes por ano o seu pai organizava uma comitiva para busca-la e leva-la para a escola. Iam a cavalo, entre cobras e jaguatiricas. Dormiam em pousos distribuídos ao longo do caminho, atravessavam rios, tomavam chuva (abençoada memória, aos quase 90 anos ela ainda lembrava de tudo: Rio Guaricanga, a Estalagem São Pedro).
 
Com as freiras aprendeu a falar francês, a bordar e a tocar violino.
 
Foi levada ao altar por um príncipe encantado, o grande amor da vida dela. Esse homem, com muito humor e muita delicadeza, terminou de criar essa adolescente que, nove meses depois, dava a luz à sua primeira filha. Ou seria mais uma de suas bonecas?
 
Era tão linda, olhos tão azuis, tão pequena. Luiza. Não, Luizinha - e assim é em sua certidão de nascimento.
 
Ficou viúva muito cedo, com quarenta e seis anos e doze filhos, dois epiléticos.
 
Mudou-se para a cidade grande, na esperança de oferecer às filhas mais novas horizontes mais abertos, mais oportunidades e, secretamente, para possibilitar que encontrassem pretendentes sem vínculos de parentesco (pois acreditava que a existência de vínculo sanguíneo tinha sido a responsável pela epilepsia desenvolvida por dois dos seus filhos).
 
A mesa, antes farta, passou à falta. Todas elas houveram que ir à luta - e cada uma construiu a vida à sua maneira.
 
Não demorou para se tornar a mãe de outra dezena de filhos - que chamamos de agregados.
 
Ela benzia, aquecia, alimentava. Ela costurava presentes que sabia serem verdadeiros amuletos - até hoje guardados por todos nós como tesouros, como partes daquela guerreira que se vestia de velhinha.
 
Não raro a rotina era traduzida em lindas poesias. Escrevia a mão - outra parte dos nossos tesouros.
 
Tanto ela dava, que mais e mais recebia. Experimentou todos os tipos de amor. Enterrou filhos e genros. Batizou mais de vinte netos, mais de trinta bisnetos, outros tantos agregados.
 
Com sabedoria de abuela, conhecia as chuvas, os ventos, as plantas. Conhecia as pessoas.
 
Ela era a generosidade em forma de gente. Ela era a mão estendida. Ela era a disponibilidade. Ela olhava, acariciava e amava sem pressa.
 
Eu também não tinha pressa, pois a via andar cada vez mais devagar, mais curvada, mais frágil. Ainda havia tanto a aprender, tanto a absorver, tanto a trocar.
 
Ela me chamava de Talentosa.
 
Eu estava cozinhando com a Maria Júlia no colo, grávida de quatro meses do Felipe. Cansada após duas noites no Hospital com o Fabiano, que se recuperava de uma cirurgia doloridíssima na coluna.
 
Ouvi gritos desesperados e muita correria. Corri também. Não lembro como, mas eu e o meu barrigão estávamos em cima dela. Eu não conhecia nada de primeiros socorros, mas respiração boca-a-boca sempre funcionava nos filmes. Não pensei duas vezes. Durante quase dez minutos respiramos juntas.
 
Foi a última vez que a vi.
 
Os quarenta dias que se seguiram foram de profundo arrependimento. Ela poderia ter morrido em casa, nos braços das suas filhas, mas estava sozinha em uma UTI. E se eu não tivesse insistido?
 
Até que um dia ela teve uma súbita melhora e, ao telefone, disse: Talitinha, eu te amo. E eu me senti profundamente perdoada.
 
Foi a última vez que nos falamos.
 
A minha brava âncora de luz se foi e, desta vez, quem se curvou fui eu.
 
Reconheci, naquela hora, muito dela em mim: o amor pelos cavalos, a paixão pela terra, o gosto pelas plantas, o dom da escrita, o prazer da casa cheia.
 
Ela me deixou com os seus maiores tesouros, confiando-me os próximos passos.
 
Mulher forte. Mulher doce. Mulher de fé.
 
Maria.

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